Esperando Godot: Quais são as conexões com o Brasil de hoje?

Esperando Godot: Quais são as conexões com o Brasil de hoje?

Esperando Godot, peça escrita pelo irlandês Samuel Beckett em 1949, conta a estória de duas personagens ‘clownescos,’ Vladimir e Estragon, que estão à espera de alguém possivelmente chamado Godot. Porém, sua chegada é sempre postergada e nada acontece, com as duas personagens simplesmente esperando alguém que não aparece. A peça faz parte do gênero do teatro do absurdo, que surgiu no pós-guerra europeu, que cria peças sem sentido nem direção linear, resultado de uma guerra de seis anos que mostrou, para muitos, a bagunça que é a vida e que, para aqueles que perderam entes queridos, deixou de ser importante. Ou seja, o teatro do absurdo foi um reflexo do que se passava no cotidiano europeu. Aqui estão duas amostras do absurdo a que me refiro na peça: 

 

Vladimir Ajudou a passar o tempo.

Estragon Teria passado igual.

Vladimir É. Mas menos depressa.

 

Pausa. 

 

Estragon O que a gente faz agora?

Vladimir Não sei.

Estragon Vamos embora.

Vladimir A gente não pode.

Estragon Por quê?

Vladimir Estamos esperando Godot.

Estragon É mesmo.

 

Pausa. (Páginas 63 – 64.)

 

Estragon Agora não vale mais a pena.

 

Silêncio.

 

Estragon Agora não vale mais a pena.

 

Silêncio.

 

Vladimir É mesmo. Agora não vale mais a pena.

 

Silêncio. 

 

Estragon Então, vamos embora?

Vladimir Vamos lá. 

 

Não se mexem. (Página 70.)

 

Gostaria de centrar minha discussão em volta de uma questão feita por minha professora de Português, Maggie Moraes: ‘Por que é que algumas obras literárias nunca tornam-se defasadas?’ A resposta neste caso é: Esperando Godot nunca se torna defasada pois absurdos estão sempre acontecendo à nossa volta. Mesmo tendo sido escrita em um contexto tão distante do Brasil contemporâneo, Esperando Godot retrata absurdos tanto quanto o Brasil ‘pandêmico’, em especial com que diz respeito à educação durante a pandemia.

O estado da educação pública brasileira é um absurdo maior que aqueles retratados por Beckett. Em novembro, dos 56 milhões de estudantes brasileiros (escolas/universidades públicas e privadas), 19.5 milhões não tiveram acesso ao ensino à distância, portanto, não tiveram nenhum tipo de educação formal desde Março, exceto pelos shows de educação diários da TV Cultura – o que claramente não é o suficiente. Nosso país abriu bares antes de escolas, enquanto países como a Inglaterra seguiram com a educação sendo atividade essencial. Absurdo. E por que isso acontece? Acontece pois nosso governo, como vários que o antecederam, está mais ocupado com ganhos econômicos a curto prazo (visando reeleição, claro) ao invés de priorizar crescimento econômico a longo prazo, o que seria muito mais importante para uma afirmação do potencial brasileiro no cenário econômico. Para esse segundo tipo de crescimento econômico, a educação da população é um componente crítico e necessário. Aqui, a educação fica para trás, mas o resto volta a funcionar. O resultado? Enquanto o sistema de saúde batalha contra a doença, alguns de nossos compatriotas fazem de tudo para propagá-la, abrindo estabelecimentos com protocolos muito mais limitados do que os de escolas. 

Por outro lado, a pandemia não trouxe esta enxurrada de problemas. Vários dos absurdos vistos na pandemia já ocorriam antes de Março de 2020. É inegável que o abismo entre a educação privada e pública já existia, de que havia uma falta de bom senso na formação e na implementação das políticas do governo federal. A pandemia apenas acentuou tais diferenças; agora, estas têm efeitos instantâneos, como a fome para o estudante que dependia da marmita para se alimentar. Talvez mais pertinente até, a inexistência da educação solidifica nosso posto como país com potencial imenso, mas com uma realidade deprimente. 

Absurdo

Para averiguar a situação da educação, conduzi uma entrevista com uma aluna da Graded que participa do clube Graded Beyond Boundaries, para poder trazer a perspectiva de alguém que estuda em uma escola privada fantástica mas que, ao mesmo tempo, ajuda alunos vindos do ensino público, para podermos analisar o abismo entre os dois. Quando perguntada sobre as matérias que o aluno dela, que cursa o 8o ano, está estudando, ela me disse que fazem divisão básica e a extração de porcentagem, como “o que é 10% de 500?” Absurdo que um menino de 8o ano esteja aprendendo isso só agora e, mesmo assim, o “aluno tem dificuldade para entender como resolver esses problemas”, pois tem uma base de conhecimento muito fraca, como contou a aluna da Graded. Ela vai mais adiante, relatando que “a escola em que o meu aluno estuda claramente não está apoiando ele para que possa ser bem sucedido na escola (…) é extremamente evidente como a escola do meu aluno não liga para o seu bem-estar e seu avanço como estudante”. Práticas deste tipo ocorrem há muito mais tempo do que a pandemia. Se o menino chegou ao 8o ano sem fazer divisão, isso não é culpa da pandemia, mas, sim, de um sistema de educação falho. Absurdo. O excerto de Esperando Godot que coloquei acima (o que se refere às páginas 63 e 64) exemplifica muito bem a situação da educação brasileira. Muitos alunos, como Vladimir e Estragon, querem “ir embora”, ou seja, usar sua educação para alcançar um posto mais alto na vida e sair da situação atual, que, muitas vezes, é péssima. Porém, não podem ir embora, pois estão esperando seus ‘Godots,’ neste caso uma melhora no nível de aprendizagem que garantirá um futuro melhor para a geração de jovens brasileiros. Como essa melhora não vem, ficam à espera de algo que, como Godot para Vladimir e Estragon, nunca chegará. Absurdo

Por fim, gostaria de levantar um ponto em que Godot e o Brasil contemporâneo se distinguem. O tom da peça é bem sombrio e repetidas vezes as personagens são vistas tentando matar-se, como à página 25:

Estragon E se a gente se enforcasse?

… 

Estragon À forca sem demora!

Estas instâncias retratam o desafeto para com a vida, que era tema recorrente em famílias europeias após a destruição da Segunda Guerra Mundial. Porém, vejo que, na pandemia, o oposto aconteceu: mesmo sufocado por mortes, a catástrofe parece ter reavivado o desejo de viver e reiterado quão valiosa é a vida, que pode ser subitamente perdida. 

Ou seja, vivemos em um mundo que faz pouquíssimo sentido? Sim. Presenciamos absurdos no nosso cotidiano? Sim. Mas o absurdo é uma experiência essencialmente humana, pela qual todos nós passamos. Obras literárias que englobam este tema do absurdo nunca se tornam defasadas por causa disso, como mostra o exemplo do Brasil atual. Isto é muito bem exemplificado por Esperando Godot, que faz conexões nítidas com o Brasil de 2021, mesmo tendo a peça sido escrita há 72 anos. Por fim, se me perguntam se vale à pena ler Esperando Godot? Com certeza, especialmente neste momento de pandemia, já que Beckett consegue mostrar absurdos de forma cômica, animando um pouco nossas vidas que, frequentemente, aparentam ser tão sombrias.