O besouro: chamado Sísifo

A obra de ficção A Metamorfose, escrita pelo autor checo Franz Kafka, publicada no ano de 1915, faz uso da fusão de elementos realistas e fantásticos como instrumento de crítica às imperfeições do sistema capitalista. Isso traz um senso de reflexão ao leitor, induzindo à reflexão sobre perguntas de sentido da vida, artificialidade com que nós vivemos e a robotização dos seres humanos – a repetição de ações automatizadas e inconscientes. Esses pensamentos se ligam ao movimento existencialista que é representado pela erudição de ideias filosóficas focadas na análise da existência humana, o porquê do porquê do seu sentido por meio de três pilares principais que são a liberdade, fenomenologia e autenticidade (“Existentialism: Crash course philosophy #16”). Dados estes pensamentos, a busca do significado desse fenômeno(viver) se torna absurda. Deste modo, o existencialismo traz a ideia de que estamos presos num ciclo que não faz sentido, para o qual não é possível encontrar significado. Por isso, a vida se torna completamente artificial. Esta é a crítica que Kafka apresenta sobre nossa existência em sua mais famosa obra, A Metamorfose

O ciclo vicioso mencionado acima e a discussão sobre a artificialidade da nossa existência estão presentes há séculos na história humana. O mito grego de Sísifo, rei de Ephyra, é um exemplo de tais conceitos. Ele conta que o rei tentou enganar a morte duas vezes. Consequentemente, Hades, deus da morte, o puniu, condenando Sísifo a empurrar eternamente uma pedra grotesca morro acima. Porém, toda vez que ele atinge o topo, a pedra rolaria de volta ao chão, fazendo com que ele tenha que repetir esta mesma ação ao longo de sua vida eterna. Assim, o condenado se engaja em um trabalho incessante e sem propósito algum (Aidar). Essa artificialidade do mundo do trabalho e existencial apresentada no mito também é discutida na obra de Kafka por meio da vida de seu protagonista, Gregor. 

É cativante como o livro de Kafka se conecta com a mitologia de Sísifo em dois pontos principais. No mito, Sísifo exerce um trabalho artificial, sem propósito. Isso se conecta com a obra de Kafka, pois Gregor trabalha incessantemente para nada e isso não torna sua vida melhor. Isto é, quando Gregor se “encontra em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (p.7), é como se Gregor tivesse se libertado mentalmente daquele ciclo incessante, da artificialidade. Porém, fisicamente, ele ainda se mantém aprisionado à condição física de um inseto, como Sísifo se mantém preso ao ciclo de empurrar a pedra para o alto da colina repetidamente. O segundo ponto é a conexão entre a pedra que Sísifo empurra e o tema trabalho. Para a família de Gregor, é como se a pedra representasse o ato de trabalhar. Eles passam a vida constantemente pensando no trabalho de Gregor sem se engajar com outros elementos, como a cultura, uma leitura, ou, até mesmo, o cultivo de algum hobby. Da mesma forma, Sísifo empurra a pedra morro acima sem sequer virar seu olhar, sem jamais olhar para o céu ou para a paisagem, preocupando-se somente com sua pedra, como os pais de Gregor se preocupam com o trabalho dele. Em um determinado momento da obra, os pais de Gregor têm um dia de folga do trabalho depois de sua morte e é somente aí que tiram a atenção do trabalho e se dão conta do quanto a filha deles cresceu e do quão bela ela se tornou.  

“Ela havia desabrochado e havia se tornado uma exuberante moça” (p. 111). 

Contudo, foram-se anos até que a família Samsa pudesse se libertar do  pensamento fixo no trabalho. 

Outro ponto interessante sobre A Metamorfose é que o narrador não especifica a espécie do inseto que Gregor se torna. Esta escolha abrange uma gama de possíveis interpretações e conexões na mente do leitor. É possível considerar que a escolha incerta do narrador leva o seu público a conectar seu protagonista, Gregor,  a Sísifo e, até mesmo, a uma espécie de besouro que carrega uma pedra de fezes até sua toca (espécie Digitonthophagus gazella). Isso porque, como Sísifo, o besouro rola uma pedra de fezes para guardá-la e se alimentar dela aos poucos. Uma vez que a pedra é muito maior que seu tamanho, esta ação representa o mesmo trabalho árduo e repetitivo de Gregor e Sísifo. O que, por sua vez, se conecta ao existencialismo – a ideia da repetição de ações robotizadas e sem propósito. Estas alusões ao mito e ao besouro dão ênfase à condição de Gregor, que, transformado em um inseto, não escapa desse ciclo vicioso e da artificialidade de sua própria existência. O que pode servir de crítica aos trabalhadores da industrialização que davam suas vidas e saúde a horas incessantes de trabalho árduo para ganharem muito pouco, tornando-se besouros metaforicamente, performando práticas robóticas para sobreviver (ter alimento).  

Outra conexão intrigante que pode ser feita com o existencialismo da obra é o trabalho do artista surrealista belgo René Magritte. Sua obra “Golconda” (1953), em particular, apresenta uma pintura em que a imagem de um homem aparece caindo repetidamente  por toda extensão do quadro. A ideia da repetição da queda de um mesmo homem se compara a Gregor e a seu trabalho repetitivo incessante, pois a queda do homem na obra seria a transformação de Gregor em um inseto. E, portanto, tanto a pintura quanto o livro, o mito e o besouro se conectam com o princípio do existencialismo apresentado em A Metamorfose. Magritte aborda esse tema por meio do elemento repetitivo em “Golconda”, o que também reflete a estética do Absurdo, levando o observador ainda mais profundamente ao questionamento do porquê da vida. Considerando as três expressões artísticas, a Metamorfose, o mito e o trabalho de Magritte e, até mesmo, o besouro, pode-se afirmar que todos apresentam os princípios do existencialismo porém em manifestações artísticas diferentes e únicas.   

Minha análise sobre a procura ilógico e absurdo do sentido vida 

Viver a vida sem sentido é belo, pois podemos indagar e hipotetizar seu sentido. É a unicidade com a qual cada um de nós cria esse sentido para a vida que nos torna seres humanos.  O significado da vida é uma construção social, pois a existência precede a essência e, sem a crença coletiva do que ele é, podemos cada um de nós encontrar nosso próprio, uma vez que não há resposta certa ou prova para tal fenômeno. Gosto de pensar que  o fato de não ter sentido abraça o sentido – aconchega de forma confortável a possibilidade de darmos o sentido que preferimos à vida.