Um cruzamento qualquer

Manhã de segunda-feira. Céu nublado. Carros prata, pretos, brancos e vermelhos enfileirados no trânsito. Uma leve garoa, típica da capital, deixa o dia mais cinzento e molhado. Crianças indo ao colégio, pais indo trabalhar. Ônibus superlotados. Pedestres sofrendo para atravessar a rua. Um cruzamento qualquer. O asfalto molhado e eu, no ônibus escolar. Com fones de ouvido, excluo-me da realidade barulhenta das crianças ao meu redor. Olho pela janela e reflito. Numa cidade de dez milhões de habitantes, tanta gente que desconheço.

Num cruzamento qualquer, de repente, ouço um som. Tiro os fones de ouvido para melhor escutar. É agudo e estridente. Não é um som que desconheço. Na verdade, todos o conhecem. É o som de uma vida em perigo, alguém precisando de ajuda, de médicos ou de um hospital. É a sirene de uma ambulância. O semáforo, verde para nós, está vermelho na outra direção, onde se encontra o veículo. Os carros, apressados, não escutam o lamentar da ambulância. Ou talvez o escutem, mas ignoram-no. Não a deixam passar.

O que leva alguém a priorizar o próprio lugar numa fila de carros quando uma pessoa corre risco de vida? Em que momento passamos a ser tão egocêntricos que chegar ao destino no horário certo é mais importante do que dar a vez a uma ambulância? Poderia ser algum conhecido. Filho do amigo do seu pai, que você conheceu num jantar uma vez. A avó da sua vizinha, que lhe serviu café da tarde com bolo e suco de groselha quando era criança. Faria alguma diferença? A vida de um desconhecido vale menos? Se eu soubesse as respostas a essas perguntas, não escreveria sobre elas.

A fila anda e os carros passam, um por um. A ambulância permanece estacionada, impedida pelo sinal vermelho e pela multidão de veículos que, apressados, não escutam seu som. O cruzamento ingrato perpetua o egoísmo dos que dirigem.

Indignada, culpo os motoristas. Mas talvez a culpa não seja deles. Em uma cidade de dez milhões de habitantes, tanta gente que desconheço. Porém é essa cidade cinza que nos une, nos faz semelhantes, nos iguala. A correria do cotidiano nos aliena e desumaniza. Se fosse algum conhecido, agiríamos de maneira diferente. Se fosse um familiar, deixaríamos a ambulância passar. Mas uma vida desconhecida corre perigo e não podemos nos atrasar.

Tempo, escasso tempo. Não podemos esperar. Tempo gasto no trânsito, perdido num cruzamento qualquer. Não queremos perder nosso valioso tempo. Por isso não deixamos a ambulância atravessar apesar do som de uma vida em perigo. O motorista é o ser desumano em sua essência. Mecanizado, pré-programado para cumprir as tarefas diárias sem se preocupar com o resto, sem se deixar afetar. Chegar ao destino é o único objetivo. Um absurdo que não conseguimos evitar.

“Você é escravo do trânsito,” dizem as pichações nos muros abandonados. Será verdade? Quando o sinal está verde, o motorista anda. No amarelo, acelera e, no vermelho, para. De sexta-feira, acorda mais cedo para driblar o engarrafamento e evita sair na hora do rush, que afinal não dura apenas uma hora. O rádio fala sobre o trânsito, o aplicativo no celular o ajuda a pegar atalhos e fugir das rotas mais congestionadas. Assim, mesmo ao ouvir a ambulância, a voz do trânsito fala mais alto. “Continue”, ela diz. “Você não pode parar. Logo o sinal fecha novamente”. Somos todos escravos.

Será que sempre fomos assim? Acredito que não. Quanto mais tecnologia criamos, mais alienados nos tornamos. Quanto mais carros compramos, menos nos importamos com o outro. É um processo de involução. Esquecemos do que realmente importa. E decidimos ignorar o som da ambulância. Que outros sons somos capazes de ignorar?

Manhã de segunda-feira. O céu carregado. Carros prata e pretos, ambulância branca e vermelha, todos estressados no trânsito. Olho pela janela e penso: podemos deixar a ambulância passar? É uma questão de observar a realidade claramente. A cidade nos cega, mas precisamos enxergar. O barulho dos carros nos ensurdece, mas precisamos escutar. A ambulância se aproxima. Deixe-a passar.

Um pequeno carro prata se aproxima. Ele é diferente dos outros. Pequenino, porém o som da ambulância incomoda-o tanto quanto a mim. Ele para e escuta, freia e dá a vez. Com a sirene gritante, suas luzes vermelhas piscando, a ambulância passa, finalmente. O pequeno carro prata, diferente por não ser indiferente. Ele vê, escuta e, naquela manhã cinza de segunda feira, com a garoa caindo no asfalto molhado, é o objeto mais humano que vi.